Eduardo
Felipe Matias
Meu
livro A humanidade e suas fronteiras, de 2005, começava com uma parábola
futebolística. Um jogo que se desenrolava de forma inesperada, em que
treinadores eram forçados a mexer no time por pressões externas incomuns,
vindas até de fora do estádio, e regras deixavam de ser respeitadas em partes
do campo invisíveis ao árbitro, cuja autoridade também era confrontada por atores
diversos à beira do gramado – em uma época em que não havia VAR.
Naquele
momento, o mundo passava por transformações que o afastavam da ordem
internacional até então vigente. Assim como os técnicos e o juiz daquela
estranha partida, Estados soberanos perdiam autonomia e viam sua capacidade de
ação reduzida por dois fatores: a globalização econômica – com o fortalecimento
das empresas transnacionais e a integração dos mercados financeiros – e a
revolução tecnológica, marcada pela consolidação do então chamado
“ciberespaço”.
A
crescente interdependência vinha acompanhada por uma globalização jurídica, com
organizações de cooperação internacional e blocos de integração regional afetando
a soberania estatal. Dimensões transnacionais e supranacionais eram
incorporadas por meio de novos ordenamentos e instituições que expandiam suas
fronteiras, enquanto as fronteiras estatais se tornavam mais permeáveis. Um
novo paradigma despontava no horizonte: o da sociedade global.
De
lá para cá, muita coisa mudou. Se o avanço da globalização e do
multilateralismo sinalizava uma soberania compartilhada, vinte anos depois o cenário
se inverteu. Choques sucessivos reergueram barreiras e devolveram aos Estados
um papel central.
A
crise de 2008 foi o primeiro sinal dessa inflexão. O colapso dos mercados
financeiros revelou como turbulências podiam se propagar rapidamente por
sistemas interconectados. O comércio internacional recuou 12% em 2009. O G-20 ocupou
o centro do palco e garantiu estímulos equivalentes a 1,8% do PIB global, mostrando
que, quando a situação apertava, eram os cofres nacionais que pagavam a conta.
Depois,
a pandemia de covid-19 expôs a vulnerabilidade das cadeias globais de valor. O
PIB mundial caiu 3,5% em 2020. Máscaras cirúrgicas tornaram-se moeda
diplomática e cargas de equipamentos médicos foram desviadas em aeroportos. O
modelo just-in-time perdeu espaço, sendo substituído por estratégias de
redundância, com conceitos como reshoring e friend-shoring
orientando políticas industriais e comerciais. O custo aumentou, mas a
prioridade passou a ser reduzir riscos e reforçar a resiliência.
A
invasão da Ucrânia pela Rússia, em 2022, foi mais um golpe. Sanções coordenadas
– como a exclusão de bancos russos do sistema SWIFT e limites ao preço do
petróleo – mostraram que a interdependência pode ser usada como arma. O corte
no fornecimento de gás à Europa evidenciou a facilidade com que laços
econômicos se transformam em instrumentos de pressão geopolítica.
Nesse
ambiente, organizações internacionais se enfraqueceram, e o multilateralismo
recuou. A eleição de Donald Trump em 2016 desencadeou um populismo
protecionista, caracterizado por barreiras alfandegárias e migratórias e pela
revisão de acordos. Em seu segundo mandato, essas medidas têm se intensificado,
com elevações tarifárias desordenadas que desorganizaram o comércio internacional,
frearam investimentos, reacenderam a inflação e levaram a OCDE a prever o menor
crescimento global desde a pandemia. A OMC, que poderia ajudar a reverter esse
quadro, segue com seu órgão de apelação paralisado desde 2019.
Na
integração regional, os resultados são variados. O NAFTA foi substituído pelo
USMCA em 2020, mas as tarifas impostas pelos EUA ao México e Canadá causam
instabilidade. O Brexit mostrou em 2016 que nem a União Europeia está imune a
abalos. Antes disso, a crise da zona do euro entre 2010 e 2012 – com resgates
de € 750 bilhões a Grécia, Irlanda, Portugal e Espanha – havia revelado a
fragilidade de uma união monetária sem união fiscal. Poucos blocos surgiram,
destacando-se o Acordo Abrangente e Progressivo para a Parceria Transpacífico
(CPTPP) – assim rebatizado em 2018 após a saída dos EUA do pacto original – e a
Área Continental Africana de Livre-Comércio (AfCFTA), em operação desde 2021. O
Mercosul pouco progrediu.
A
sustentabilidade ganhou destaque, e o Acordo de Paris, de 2015, tornou-se um
marco no combate às mudanças climáticas, ao alinhar 195 países ao objetivo de
limitar o aquecimento global a 1,5°C. Ainda assim, permanecemos distantes de
metas compatíveis com essa ambição – contexto agravado pela segunda retirada
dos EUA do acordo, anunciada no começo do ano.
Outro
vetor central foi a ascensão da China, cujo PIB nominal saltou de US$ 2,3
trilhões em 2005 para mais de US$ 19 trilhões em 2025, a posicionando como segunda
economia mundial. A iniciativa Cinturão e Rota, com mais de US$ 1 trilhão destinados
a projetos de infraestrutura, amplia a presença chinesa em diversas regiões do planeta.
As
previsões do livro sobre o aumento do protagonismo das empresas transnacionais e
o impacto da internet se confirmaram, com as gigantes da tecnologia agora no
topo do mercado. A economia migrou dos ativos tangíveis para os intangíveis,
que em 2020 já representavam 90% do valor do S&P 500. O lançamento do
iPhone, em 2007, popularizou os computadores de bolso. Com 5G, computação em
nuvem e big data, emergiram plataformas digitais que intermedeiam informação,
consumo e trabalho em escala global. Desde 2022, a IA generativa foi
incorporada à vida das pessoas e vem reformulando modelos de negócios em ritmo
acelerado.
As
disputas geopolíticas passaram a envolver dados e algoritmos. Leis de
residência de dados e a corrida por datacenters revelam as novas fronteiras da
soberania digital. A concentração de poder nas big techs gerou respostas dos
Estados. A União Europeia aprovou legislações como o Digital Markets Act
e o AI Act, impondo regras de transparência algorítmica e gestão de
riscos. Nos EUA, o Departamento de Justiça obteve vitórias em ações antitruste.
Governos também reagem à expansão dos criptoativos – que pressionam a lógica da
soberania monetária – por meio do desenvolvimento de moedas digitais próprias,
testadas em mais de 130 jurisdições.
As
fronteiras da humanidade continuam em transformação. O Estado procura mostrar
que ainda é o dono da bola, e ameaça colocá-la debaixo do braço e acabar com o
jogo se os outros não se comportarem. É a soberania nacional, que persiste e
resiste. A interdependência, no entanto, segue incontornável. Nos últimos vinte
anos, sua importância foi renovada pela necessidade de enfrentar questões como
as mudanças climáticas e a inteligência artificial – que, por seu caráter
transfronteiriço, exigem mais governança global, não menos. Daqui a duas
décadas – ou quem sabe antes disso – saberemos se estivemos à altura desses
desafios.
Eduardo Felipe Matias é autor dos livros A
humanidade e suas fronteiras e A humanidade contra as cordas, ganhadores do
Prêmio Jabuti. Doutor em Direito Internacional pela USP, foi visiting scholar
nas universidades de Columbia, em NY, e Berkeley e Stanford, na California, e é
sócio de Elias, Matias Advogados
Artigo
originalmente publicado na edição de agosto de 2025 da revista Exame.
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