Eduardo Felipe Matias – A possível bolha
da IA: mais subprime do que pontocom?
Eduardo
Felipe Matias é autor dos livros A humanidade e suas fronteiras e A humanidade
contra as cordas, ganhadores do Prêmio Jabuti e coordenador do livro Marco
Legal das Startups. Doutor em Direito Internacional pela USP, foi visiting
scholar nas universidades de Columbia, em NY, e Berkeley e Stanford, na
California, e é professor convidado da Fundação Dom Cabral e sócio da área
empresarial de Elias, Matias Advogados
A possibilidade de que o boom da IA seja uma
bolha financeira vem sendo amplamente debatida. Se ela for real e estourar, o
cenário tende a se parecer menos com o da bolha pontocom de 2000/2001 e mais
com a crise do subprime de 2007/2008.
Na primeira, o problema principal foi a
supervalorização de ações de empresas de tecnologia criadas para explorar a internet.
Na segunda – que analisei junto à crise ambiental em meu livro “A humanidade
contra as cordas” –, ruiu uma arquitetura financeira inteira, construída sobre
dívidas arriscadas vendidas como seguras.
A hipótese que vem sendo discutida é a de que o perigo
atual não estaria apenas no hype em torno de algoritmos, mas na forma de
financiamento da infraestrutura de IA. Data centers, chips e redes de energia
estão sendo erguidos com base em dívidas, bonds e crédito estruturado – uma combinação
de alavancagem, opacidade e concentração que lembra o enredo da crise
financeira global do subprime. Nos anos que a antecederam, o mercado
imobiliário americano virou o motor de uma imensa engrenagem de crédito. Bancos
concediam hipotecas arriscadas, muitas vezes a famílias sem condições de pagar,
e empacotavam os empréstimos em títulos vendidos mundo afora. Pareciam
investimentos sólidos, apoiados na crença de que os preços dos imóveis não
cairiam no agregado. Quando estes recuaram, a inadimplência se espalhou, os
títulos perderam valor e ficou claro que o risco estava alavancado e escondido
sob camadas de engenharia financeira.
Hoje, trocando casas por data centers e hipotecas
por chips, algo semelhante começa a se formar no ecossistema de IA. Um pequeno
grupo de gigantes tecnológicos, como Microsoft, Google, Meta, Amazon e Nvidia, lidera
uma onda de investimentos bilionários em prédios, energia, sistemas de
resfriamento e estoques de processadores. Abaixo deles, empresas de
infraestrutura como CoreWeave e Crusoe assinam contratos de longo prazo, de
dezenas de bilhões de dólares, para fornecer capacidade de computação e usam
essas promessas de receita para levantar linhas bilionárias de crédito, muitas
vezes lastreadas nos próprios data centers e equipamentos. Em muitos casos, se
o projeto fracassar, o credor tem essas garantias.
Diferente de imóveis, entretanto, chips perdem
valor rapidamente. Cada nova geração de GPUs torna a anterior obsoleta, o que
faz com que muito do que está sendo construído possa valer pouco antes do
vencimento da dívida. Essa dependência de equipamentos caros e de vida útil
curta desloca parte relevante do risco para o crédito, não apenas para o
mercado acionário.
Na bolha pontocom – centrada na supervalorização
de empresas de internet recém-listadas em bolsa – a maior parte das perdas
recaiu sobre investidores de ações, como fundos e pessoas físicas, que viram
posições evaporar quando a Nasdaq desabou. O sistema financeiro, embora
abalado, permaneceu de pé. Agora, os credores – bancos, seguradoras e fundos de
crédito – podem ficar com a conta, o que aproxima a situação do roteiro do
subprime.
Características do ecossistema de IA adicionam
camadas de incerteza. Seus principais atores se conectam por uma teia de
relações comerciais e financeiras – como ilustram potenciais acordos circulares
anunciados ou em negociação entre OpenAI, Oracle e Nvidia para fornecimento de
computação em nuvem, compra de chips e aporte de capital – o que poderia ampliar
o risco de contágio. Além disso, a dívida ligada a data centers não está apenas
em grandes bancos, mas espalhada por fundos de crédito privado, seguradoras,
bancos médios e empresas de infraestrutura. Se, à primeira vista, isso dilui o
risco, na prática, torna-o invisível. Ninguém sabe exatamente quem está
exposto, e uma sequência de inadimplências pode gerar uma reação em cadeia,
como em 2008, quando produtos tidos como seguros se revelaram tóxicos.
Outra semelhança é que, assim como na crise
imobiliária se acreditava que o valor dos imóveis não cairia, hoje prevalece a
narrativa da demanda infinita por IA e da ideia de que esta irá revolucionar a
economia. Essa convicção alimenta o “medo de ficar de fora” e a pressa de
surfar nessa onda. Fundos e empresas assumem riscos crescentes, convencidos de
que financiam um destino inevitável. Como no subprime, a promessa de um futuro
brilhante serve para justificar a alavancagem do presente.
Um desfecho semelhante ao de 2008 seria mais
sombrio que o do estouro da bolha pontocom. No episódio das empresas de
internet, houve desvalorização daquelas que estavam superestimadas, perdas
concentradas em investidores e algumas falências, sem colapso financeiro. O
excesso de infraestrutura de IA pode até se mostrar útil adiante, como
aconteceu com os cabos de fibra óptica dos anos 1990. Já em uma crise ligada ao
crédito, empresas de nuvem, fabricantes de chips e operadores de data centers
teriam financiado capacidade muito acima da demanda real. Se as receitas não
cobrirem as dívidas, surgirão dificuldades de refinanciamento, violações
contratuais e perdas para credores, fundos e bancos expostos. Com tantos
vínculos entre poucos gigantes tecnológicos, basta um deles balançar para
contaminar o restante.
Assim, o modelo de financiamento que está se desenhando pode ecoar, em menor escala, a crise do subprime. Em vez de hipotecas sobre imóveis, as garantias são data centers e chips, e a lógica segue parecida – tomar muita dívida hoje apostando que o futuro será sempre melhor. Se a aposta se confirmar e o boom se mostrar uma realidade, o excesso de investimento poderá ser absorvido e reaproveitado. Se não, o estouro de uma eventual bolha da IA tende a ir além de um simples ajuste em ações de tecnologia e se tornar um novo teste para a resiliência do sistema financeiro.
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