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Grandes demais para não regular

19 Março 2024/ Notícias & Artigos/

Na Fronteir@

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Grandes demais para não regular

A discussão sobre o controle das plataformas deve incluir a preocupação com o poder econômico dessas entidades, e com a possibilidade de que elas venham a limitar a concorrência, prejudicando a inovação

 

Eduardo Felipe Matias

Autor dos livros A humanidade e suas fronteiras e A humanidade contra as cordas, ganhadores do Prêmio Jabuti, e coordenador do livro Marco Legal das Startups. Doutor em Direito Internacional pela USP, foi visiting scholar nas universidades de Columbia, em NY, e Berkeley e Stanford, na California, e é sócio da área empresarial de Elias, Matias Advogados

 

A influência das plataformas as tem colocado sob os holofotes. Embora o debate público venha focando principalmente na onda de desinformação nesses espaços, outro problema merece atenção: os possíveis efeitos concorrenciais negativos trazidos pelo acúmulo de poder por essas entidades, que são inclusive objeto de uma tomada de subsídios em curso no Brasil, promovida pelo governo federal para colher ideias que contribuam para formular políticas públicas nessa área.

Plataformas são ambientes digitais que abrangem desde as redes sociais e assistentes virtuais até os serviços de busca na internet, mensagens instantâneas, computação em nuvem e compartilhamento de vídeos. As mais relevantes são controladas por grandes empresas de tecnologia, as chamadas “big techs”, que crescem cada vez mais.

Em 2008, apenas uma das 10 maiores empresas do mundo por valor de mercado – a Microsoft – era baseada em tecnologia. Em 2024, esse número aumentou para 6. Delas, 5 detêm plataformas. Microsoft e Apple, que têm se revezado na liderança desse ranking, valem por volta de 3 trilhões de dólares cada.

O crescimento das big techs se deve a vários fatores. O primeiro deles é a digitalização da economia, acentuada pela pandemia da COVID-19, que tornou a sociedade ainda mais dependente dos produtos e serviços por elas oferecidos.

Negócios digitais, que se baseiam em códigos de computador e aplicativos em vez de ativos físicos, têm baixíssimo custo marginal de produção, reprodução e distribuição. Uma vez que os investimentos iniciais tenham sido feitos, pode-se atender clientes adicionais por quase nada, o que acarreta ganhos de escala crescentes.

Ao alcançarem um tamanho considerável, as plataformas se beneficiam do chamado “efeito de rede”. Em contraste com a maioria dos produtos e serviços, cujo valor para cada indivíduo independe ou até diminui pela existência de muitos usuários, a atratividade de uma plataforma cresce à medida que mais pessoas a adotam. Quando uma pessoa compra a mesma roupa que outra, isso não faz esse item ficar mais atraente – às vezes, até o contrário. Mas se uma pessoa faz o upload de um vídeo no YouTube, isso torna esse serviço mais valioso para as demais – mais vídeos atraem mais usuários para o site, o que por sua vez atrai mais criadores de vídeos.

Esse efeito é especialmente notado nas redes sociais online, que atualmente reúnem quase 5 bilhões de pessoas – só o Facebook tem mais de 3 bilhões de usuários. Nelas, o principal objetivo é se relacionar com outras pessoas e acessar o conteúdo por elas compartilhado. Em uma rede de comunicação fechada, um usuário só pode se comunicar com outro da mesma rede. É como ter um telefone que só faz ligações para aparelhos do mesmo fabricante. Mesmo que preferisse um modelo de outra marca, a pouca utilidade deste levaria você a comprar um aparelho da mesma marca que seus contatos possuem. Da mesma forma, a utilidade de uma rede social fechada depende do número de pessoas com as quais você pode interagir. Se sua turma de amigos está no Instagram, você abrirá uma conta no Instagram.

Outro fator que motiva a concentração é que, à medida que seus produtos e serviços são utilizados, as big techs coletam dados que servem para aprimorar o desempenho de seus algoritmos, o que é especialmente importante para negócios baseados em inteligência artificial (IA).

O Google, por exemplo, processa 8,5 bilhões de buscas todos os dias, o que lhe garante os dados necessários para aperfeiçoar seu motor de busca. Os anunciantes, sabendo que é a essa plataforma que as pessoas se dirigirão quando quiserem procurar alguma coisa, pagam mais para estarem nela. Isso garante ao Google mais recursos para melhorar seu produto, atraindo ainda mais usuários. Para cada usuário individual que gostaria de mudar de serviço, o conhecimento acumulado que a plataforma dominante tem dele confere a esta uma vantagem significativa sobre um concorrente que ainda não conhece essa pessoa e, por isso, não pode personalizar serviços para ela. Isso faria as indústrias que dependem da IA tenderem naturalmente ao monopólio.

Logo, o ganho de escala proveniente da digitalização, o efeito de rede e o acúmulo de dados produzem uma dinâmica do tipo “o vencedor leva tudo”. Isso vai de encontro ao que as big techs costumam sugerir em sua defesa: que bastaria simplesmente optar por outro prestador de serviços, afinal, “a competição estaria apenas a um clique de distância”. Essa ideia, que até poderia ser verdadeira nos primórdios da internet, não retrataria mais a realidade.

Algumas plataformas são a única maneira pela qual certas pessoas estão conectadas. Ao sair delas, um usuário pode perder de vista amigos ou familiares distantes, ou mesmo cortar o contato com seus clientes. As perdas resultantes dessa mudança representam um “custo de troca”. Este gera outra barreira de entrada significativa para o surgimento de plataformas alternativas, prejudicando a concorrência e, com isso, potencialmente inibindo a inovação no setor.

Na crise financeira global de 2008, notou-se, tarde demais, que algumas empresas haviam se tornado “grandes demais para quebrar”, pelos efeitos negativos que sua falência produziria sobre todo o sistema. Essa constatação foi seguida do socorro público a elas e de tentativas de se aperfeiçoar a legislação, para evitar que a situação voltasse a se repetir. Hoje, a percepção é que as big techs e suas plataformas, pelo impacto que produzem sobre a sociedade, teriam virado grandes demais para serem ignoradas pelas autoridades. É uma boa hora para discutirmos seu papel.

 

Eduardo Felipe Matias é autor dos livros A humanidade e suas fronteiras e A humanidade contra as cordas, ganhadores do Prêmio Jabuti e coordenador do livro Marco Legal das Startups. Doutor em Direito Internacional pela USP, foi visiting scholar nas universidades de Columbia, em NY, e Berkeley e Stanford, na California, e é sócio da área empresarial de Elias, Matias Advogados

 

Artigo originalmente publicado em 19 de março de 2024 na revista Época Negócios.



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